Quando criança, eu queria que meu pai me ouvisse, que conversasse comigo. Claro, para a minha geração isso seria um comportamento muito excepcional. O usual era o pai dar ordens inquestionáveis, numa hierarquia rígida como num quartel, sob o risco do pai “perder a autoridade”. Isso era o que importava para os pais, esse era o valor maior a ser perseguido e mantido numa família: a autoridade. Sem autoridade, seria o caos: seu filho viraria um maconheiro ou um mariquinha, sua filha seria uma piranha ou uma mãe solteira, ou ambos virariam comunistas… Frases como “se não me respeita, então que tenha medo de mim” eram comuns nos lares daqueles loucos anos 70. A repressão política que a ditadura militar exercia nas ruas era repetida atrás de cada muro, de cada postigo da porta da frente. Ou não seria o contrário? Os militares estariam apenas levando para a rua aquilo que era comum dentro de cada casa? O que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Tanto faz, porque era a mesma merda!
Meu pai não fugia à regra. Ele trabalhava, chegava em casa, sentava no seu lugar marcado (só ele e minha irmã tinham lugar certo na mesa) e era o rei do lar. Reclamações, ordens e silêncio. Ninguém podia incomodar meu pai quando ia assistir televisão. E quando as válvulas da Telefunken falhavam e a imagem sumia, eu tinha que levantar correndo para dar uma porrada do lado da televisão para que a imagem voltasse. (É bem verdade que sinto um pouco de saudade desse método de fazer as coisas funcionar, mas um roteador sem sinal não resistiria nem a um peteleco…).
Ele era distante e autoritário, mas eu o amava. Eu chorava de saudade quando ele viajou para o Pará, no Projeto Rondon, e fui super feliz ao Galeão esperar o avião que trouxe o meu pai com cara de quem não queria ter voltado. De qualquer maneira, eu não parava de questionar. Queria ser aviador da FAB, assim como metade dos meus amigos, mas meu avô me alertou: ‘militar não pode questionar nada. Se receber uma ordem não pode perguntar o porquê. Você vai passar mais tempo preso do que voando’. Me convenceu… Eu não queria ser obrigado a me calar e engolir ordens arbitrárias. Eu queria era voar!!!! E por muito questionar, batia de frente com meu pai quase sempre, tendo que me submeter ou às suas palavras ou à sua mão pesada.
Na adolescência, meu pai se aproximou mais e ousou me enxergar e me escutar. Ensinou-me a dirigir, sem paciência nenhuma, mas levou, assim como meu avô materno. Conversava sobre o colégio, sobre o que eu queria para o futuro. Na minha entrada para o segundo grau, ele fez algo que admiro muito. Eu já queria estudar medicina e o vestibular sempre foi difícil. Uma escola em Niterói tinha muitos alunos aprovados todo ano para medicina. Meu pai tinha estudado lá como bolsista no cursinho pré-vestibular. Fui fazer a prova de admissão para a escola e, no dia da prova, ele me levou (o que era bastante incomum), e durante a prova o diretor da escola o reconheceu no pátio, eles conversaram e o diretor perguntou se ele queria uma bolsa de estudos para mim. Ele recusou, dizendo ‘agora eu posso pagar para o meu filho’. Esse é um exemplo que meu pai deixou, de coerência e dignidade, que eu procuro seguir.
Quando eu passei no vestibular, cheguei em casa com a edição extra do jornal na mão (naquele tempo não existia internet!!!!!) e mostrei-lhe. Ele ficou muito feliz e me deu um dinheiro para eu ir à padaria comprar uma Brahma pra gente comemorar. Sentamos à mesa da cozinha e tomamos aquela Brahma, só eu e meu pai, que ali me reconhecia como um homem, como um amigo!
Meu pai mudou, e tornou-se meu amigo na vida adulta. Como eu fui morar no interior, falávamo-nos por telefone com frequência, contando sobre a vida, minhas conquistas de jovem médico iniciando a carreira numa cidade estranha, as dificuldades de adaptação, as alegrias de estar num lugar tão agradável. Chegamos ao ponto de ele também me pedir opinião sobre decisões que precisava tomar. Meus filhos nos aproximaram mais ainda, e ele amou muito esses netos e demonstrou esse amor! Ele nos recebia com um abraço apertado e um beijo, como ele nunca fez enquanto eu era criança. Acho que ele perdeu o medo de perder a autoridade… Deve ter aprendido que o carinho e o amor valem muito mais do que a autoridade.
Meu pai morreu cedo, sequer chegou aos 60 anos… Já se vão 21 anos que eu o perdi e ainda não me acostumei. Quando alguma coisa muito boa acontece comigo, penso em ligar para ele, para em fração de segundos lembrar que já não dá mais. Gostaria de poder contar com seus conselhos quando passo por situações de dúvida. Seus conselhos tão previsíveis na minha infância, foram cada vez me surpreendendo mais na vida adulta. Somente por esses motivos lamento a sua morte, mas alguns meses antes de morrer, ele me disse que tinha conquistado tudo que havia desejado na vida, que nada mais lhe faltava, que só sentia falta do seu pai.
Há alguns anos, passei por uma situação que tive que ficar fazendo exames e a princípio pensei que não tinha medo de morrer. Mas quando lembrei a falta que sinto do meu pai, imaginei como meus filhos sentiriam a minha falta e tive medo de deixá-los. Com meu pai, mesmo que por vias tortuosas, aprendi que o pai precisa estar presente na vida dos filhos, não pressionando, mas se colocando à disposição para aqueles momentos que parecem sem saída, e poder oferecer uma solução ou, ao menos, solidariedade e aconchego. Saudade do meu pai!